terça-feira, 21 de outubro de 2008

Poesias


Ao ler as poesias de Márcia Matos, tive a sensação de estar de volta aos bons momentos da vida que passei. Escolhi entre as melhores, duas poesias para deixar registrado aqui no blog. Poetisa de extrema sensibilidade e garra com as palavras, tive a honra de conhecê-la pessoalmente. Segue então meu apreço.





Embarcação



Avisto na praia

O cão que me aguarda na areia



Com patas frias caminha no escuro da água

Longe de deuses e espinhos



As cabeças dos homens dispersam o ar

E temperam a terra



venho pelo mar, debaixo de estrelas

trago na mala ecos e objetos



Que foram embrulhados na véspera

Alguns deles se quebraram, outros resistem



A maresia tinge o ar dos pulmões

Mas não reluto contra a ferrugem da viagem



Aprecio a umidade nas mochilas

Eu mesmo sou muito úmido



O consaço me ascende um cigarro

E sento na outra ponta do barco



Nuvens carregam discussões

Que os homens não terminaram



transbordam as ruas e retornam ao mar

Até a luz do outro dia



Lanço a âncora no sal

E aguardo o fim da madrugada



Os cães sempre nos esperam

Molhados ou feridos





Nota de Viagem



Viajar é um estado de visitar pela primeira vez

o seu, ou o olhar de um outro

Quer num livro, numa tela ou nos ouvidos

Sem se apoiar em qualquer premissa

E tudo que não é viagem é hábito



Uma arrogância a solidão:

esse hábito de achar que se conhece tudo o que viu



Quando viajo à Bolivia

olho um homem boliviano

para contar aos amigos como ele é

E não é um boliviano, um homem que nasce na Bolívia

É um homem que eu parei para olhar

porque nunca o tinha olhado antes

com meus olhos não-bolivianos



Não olhar para os relógios

Nem insistir no previsível

Erguer o sol por entre os cílios

e delimitar o tamanho do vão até a porta

pelo desejo de ver a rua


Em viagem

a semana pode caber úmida numa caixa de figos

E a luz chegar primeiro que a fome

derramando suas sementes



O preço da gasolina sempre sobe

E em viagem é sempre melhor

andar a pé a economizar os hábitos,

ocupar das poltronas a parte ensolarada das janelas

já que a luz cochila os olhos viciados



Há prazer numa conversa anônima em fila de supermercado

E em viagem é bom esquecer os plásticos no balcão

e transportar nos braços a medida do que se pode carregar

Em viagem, a chuva inunda dentro da roupa o corpo recém-chegado

E ouve-se o trânsito parar no farol, enquanto cruzamos as paralelas







Márcia Matos nasceu em São Paulo (1978) e graduou-se em Psicologia. Cursou Psicanálise Lacaniana e por 4 anos trabalhou em ONGs, desenvolvendo projetos de arte-educação em escolas públicas. Cursou Criação Literária na AICinema-SP e hoje é assistente do curso.