
Ao ler as poesias de Márcia Matos, tive a sensação de estar de volta aos bons momentos da vida que passei. Escolhi entre as melhores, duas poesias para deixar registrado aqui no blog. Poetisa de extrema sensibilidade e garra com as palavras, tive a honra de conhecê-la pessoalmente. Segue então meu apreço.
Embarcação
Avisto na praia
O cão que me aguarda na areia
Com patas frias caminha no escuro da água
Longe de deuses e espinhos
As cabeças dos homens dispersam o ar
E temperam a terra
venho pelo mar, debaixo de estrelas
trago na mala ecos e objetos
Que foram embrulhados na véspera
Alguns deles se quebraram, outros resistem
A maresia tinge o ar dos pulmões
Mas não reluto contra a ferrugem da viagem
Aprecio a umidade nas mochilas
Eu mesmo sou muito úmido
O consaço me ascende um cigarro
E sento na outra ponta do barco
Nuvens carregam discussões
Que os homens não terminaram
transbordam as ruas e retornam ao mar
Até a luz do outro dia
Lanço a âncora no sal
E aguardo o fim da madrugada
Os cães sempre nos esperam
Molhados ou feridos
Nota de Viagem
Viajar é um estado de visitar pela primeira vez
o seu, ou o olhar de um outro
Quer num livro, numa tela ou nos ouvidos
Sem se apoiar em qualquer premissa
E tudo que não é viagem é hábito
Uma arrogância a solidão:
esse hábito de achar que se conhece tudo o que viu
Quando viajo à Bolivia
olho um homem boliviano
para contar aos amigos como ele é
E não é um boliviano, um homem que nasce na Bolívia
É um homem que eu parei para olhar
porque nunca o tinha olhado antes
com meus olhos não-bolivianos
Não olhar para os relógios
Nem insistir no previsível
Erguer o sol por entre os cílios
e delimitar o tamanho do vão até a porta
pelo desejo de ver a rua
Em viagem
a semana pode caber úmida numa caixa de figos
E a luz chegar primeiro que a fome
derramando suas sementes
O preço da gasolina sempre sobe
E em viagem é sempre melhor
andar a pé a economizar os hábitos,
ocupar das poltronas a parte ensolarada das janelas
já que a luz cochila os olhos viciados
Há prazer numa conversa anônima em fila de supermercado
E em viagem é bom esquecer os plásticos no balcão
e transportar nos braços a medida do que se pode carregar
Em viagem, a chuva inunda dentro da roupa o corpo recém-chegado
E ouve-se o trânsito parar no farol, enquanto cruzamos as paralelas
Márcia Matos nasceu em São Paulo (1978) e graduou-se em Psicologia. Cursou Psicanálise Lacaniana e por 4 anos trabalhou em ONGs, desenvolvendo projetos de arte-educação em escolas públicas. Cursou Criação Literária na AICinema-SP e hoje é assistente do curso.