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Adélia Prado |
Neste dia deixo três poesias registradas: Ensinamento de Adélia Prado, Difícil ser funcionário de João Cabral de Melo Neto e A casa de Pensão de Roberto Marcelo.
Ensinamento
Adélia Prado
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.
Difícil ser funcionário
João Cabral de Melo Neto
Difícil ser funcionário
Nesta segunda-feira.
Eu te telefono, Carlos
Pedindo conselho.
Não é lá fora o dia
Que me deixa assim,
Cinemas, avenidas,
E outros não-fazeres.
É a dor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.
Eu nunca suspeitara
Tanta roupa preta;
Tão pouco essas palavras —
Funcionárias, sem amor.
Carlos, há uma máquina
Que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.
E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulos para todos
Os tamanhos de meu corpo.
Não me sinto correto
De gravata de cor,
E na cabeça uma moça
Em forma de lembrança
Não encontro a palavra
Que diga a esses móveis.
Se os pudesse encarar...
Fazer seu nojo meu...
Carlos, dessa náusea
Como colher a flor?
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.
Roberto MarceloA casa de pensão
Não vejo meu paiNem meus pésOs devaneios todos acorrentados em cordinhas de varalEu vivo no último bastiãoNo meio do peito uma solidão a me torturarO chão repleto de coisasNeste mesmo chão uma antípoda desejando-me saídaNão saioAs portas se abremAbrem-meÁguas para todos os tamanhos de meu corpoPobreza divididaMiseráveis migalhasMiseráveis que somos todosNos olhos vejo arrastar-se uma intifadaE meus gritos de socorroInúteisO velho, o comandante e velhos tangosFalou, me disse:É a casa de todosÉ a casa de um qualquerÉ a minha casaA casa de pensão!